sexta-feira, 25 de julho de 2003

As memórias.Li há umas semanas, quando comecei a movimentar-me pela blogoesfera, um post que continha um excerto de Literatura e Fantasma de Javier Marías e, pedindo muitas muitas muitas desculpas por não me lembrar do nome do blog onde o encontrei, tenho mesmo de o copiar:
Hoje, nas cidades, guarda-se pouca memória daqueles que nos precederam nos andares e casas e quase ninguém se preocupa em saber se essas pessoas ali foram razoavelmente felizes ou infelizes, se as paredes que contemplamos diariamente foram testemunhas de veemencias ou incertezas ou esperas, de súplicas ou de rotinas, de cantarolares ou de imprecações ou de crueldades: se alguém aqui sofreu antes de nós ou corou de prazer, se entre estas paredes se disseram coisas que quem saiu daqui - talvez obrigado a isso - nao esquecerá nunca, alguém em cuja retina estão para sempre impressas as divisões em que dormimos, comemos, vemos televisão ou escrevemos. (in Literatura e Fantasma, de Javier Marías, tradução de Francisco Vale, Relógio d'Água, 1998)

Este foi um dos felizes encontros que ás vezes acontecem sem nada fazermos: quando estamos a passar por alguma situação, de repente, parece que, por todo o lado, há sinais que essa situação também acontece a outros e que os nossos pequenos dramas não existem só, ao contrário do que pensamos, na intimidade da nossa cabeça, da nossa cama, do nosso quarto!
Em vésperas de mudar de casa (ou quase), encontrei este texto e pensei: é isto mesmo! A memória das coisas é cada vez mais breve e, ainda mais perigoso isto se torna se considerarmos que, ao recordarmos o que já passou, é provável (se não inevitável) que a nossa memória não só apague as coisas menos agradáveis (muito ao jeito de Freud) como também altere muitos aspectos do quadro que tentamos refazer. Mais complicado tem vindo a tornar-se tudo isto, para mim, pelo facto da memória, a minha, a que pretende conservar mais do que o "aqui" e "agora", se mistura, ou pelo menos tenta coexistir, com a memória do espaço, do meu. Se há coisas que se querem para sempre guardadas, há outras que teimam em surgir sem que sobre elas tenhamos qualquer controlo. No momento da mudança quero lembrar-me que aqui recebi muito inesperadamente 16 donuts quando fiz 16 anos dados por uma grande amiga, que aqui pus velas no chão e chorei, que aqui dei mimos, que aqui dancei ao som de Jamiroquai, que aqui acordei depois de sonhar! Mas, ao mesmo tempo, ainda sinto a presença (agora dolorosa) de um antigo (mais ou menos) objecto de muita muita paixão que, sem eu querer, ainda se passeia pela cozinha enquanto preparo o almoço, que ainda se debruça na varanda para ver o Cristo Rei...

Quando penso nisto também penso que talvez já esteja tudo seleccionado, que talvez a minha memória já tenha apagado as coisas menos agradáveis, como as discussões, os momentos que passei sozinha sem desejar...e que essas recordações, de umas e outras pessoas, não tenham sido apagadas, simplesmente porque não são más recordações, só se tornaram dolorosas depois de alguma coisa que aconteceu fora do meu espaço. Logo, a minha memória encarrega-se dos momentos decisivos que fizeram de uma situação, de uma relação, uma coisa menos feliz, e a memória do meu espaço, actuando quase de forma independente, decide se ainda verei ou não, nos corredores, na cama ou a janela, quem por aqui passou.

Consuelo